QUE COMIDA QUEREMOS?
Nas
últimas décadas, o Brasil se tornou um dos países com maior segurança alimentar
do mundo. Mas a qualidade é questionada por quem busca uma ética que contemple
alimentos saudáveis para o ambiente, para quem os produz e para quem os come
“(…)
o estômago se torna sensível, sucos gástricos se exaltam, gases interiores se
deslocam com ruído; a boca se enche de saliva e todas as forças digestivas
estão em armas, como soldados que aguardam uma ordem de comando para agir. Mais
alguns momentos e se terá fome.” [1]
E
agora, o que comer? Nunca o homem urbano teve tantas opções de nutrição, nem
tantas informações sobre os efeitos dos alimentos no organismo. Bom seria se
esse desempenho ótimo nos campos agroindustrial e da pesquisa científica
tivesse se convertido em saúde alimentar. Só que não. De modo geral, ganhamos
em quantidade (segurança alimentar), mas perdemos em qualidade (contaminação
química, desequilíbrio nutricional), vitalidade (esterilidade) e diversidade
(padronização e aumento de escala).
Ao
longo do século XX, o alimento padronizado ganhou status de
comida saudável em razão do controle biológico dos microrganismos (bactérias).
Para isso, abriu mão de suas características originais de cor, sabor e textura,
ou seja, da sua integralidade. Iogurte e macarrão tornaram-se monotonamente
iguais no Brasil, na África do Sul ou em Israel.
No
século XXI, há uma tentativa de resgatar premissas da tradição alimentar e dar
um passo além. Não basta ser integral e estar livre de contaminantes
biológicos, o alimento precisa ser saudável para o meio ambiente, para quem o
produz e para quem o come, além de estar culturalmente ajustado às tradições
dos diferentes povos. “O mundo contemporâneo pede um alimento ético”, resume a
nutricionista Elaine de Azevedo, especializada em orgânicos, pós-doutorada pela
Faculdade de Saúde Pública da USP e professora adjunta da Universidade Federal
do Espírito Santo. Apesar da recente disseminação de sistemas de
rastreabilidade, a nutricionista ressalta que pouco se sabe sobre a vida
pregressa dos alimentos à mesa dos brasileiros. Menos ainda sobre as
microssubstâncias que podem esconder. “Se, por um lado, a comida está
biologicamente mais segura do que há 50 anos, por outro, chega quimicamente
contaminada com agrotóxicos, aditivos sintéticos, drogas veterinárias,
fertilizantes químicos, contaminantes da irradiação (procedimento para
esterilizar alimentos). Sem falar dos transgênicos”, diz.
Em
compensação, o movimento reativo em prol de uma cultura alimentar alternativa
nunca foi tão plural. Enquanto a indústria quase não diversifica as opções além
do light, diet e baixa caloria, as propostas
contemporâneas de dietas se multiplicam: podem ser orgânicas, vegetarianas,
veganas, crudistas, sanguíneas, mediterrâneas, éticas, funcionais, ayurvédica,
tradicional chinesa etc.
Cidades
de grande e médio porte também já estão repletas de propostas culinárias
alternativas e com preços acessíveis: restaurantes com o charme da alta
cozinha, mas que dão preferência à simplicidade dos alimentos orgânicos e
integrais. E, sem radicalismos, não abrem mão das ótimas exceções que a
indústria oferece, entre as quais, azeites, pimentas, queijos, cervejas,
vinhos…
[1]
Descrição de como surge o apetite, feita por Jean-Anthelme Brillat-Savarin,
prefeito de Versalhes entre 1791 e 1793, e um apaixonado pelos prazeres da
mesa. Escapou por pouco de ser guilhotinado na Revolução Francesa. Escreveu A
Fisiologia do Gosto, Companhia das Letras (1995).
CAMINHADA
No
Brasil de cinco décadas atrás, com o agronegócio e a agroindústria ainda sem
grandes projeções, boa parte dos alimentos do dia a dia era naturalmente local.
E, sim, havia riscos de contaminação biológica. O leite, por exemplo, era
transportado em caçambas, sob o sol ou chuva, até as cooperativas
distribuidoras. Mas, a partir dos anos 1970, com a chegada da Revolução Verde[2]
, a Embrapa foi criada e passou a desenvolver competência na produção
agropecuária.
Enquanto
isso, a mulher ocupava o mercado de trabalho e passava a demandar alimentos
processados, que agregassem praticidade à sua dupla jornada. Supermercados e
oferta de alimentos padronizados se multiplicaram. O fast-food virou
febre. No final do século XX e início do XXI, no decorrer do processo de
globalização, o Brasil assumiu o papel de grande player na distribuição mundial
de alimentos. A essa altura, atingira o auge a “gastro-anomia”, neologismo que
o sociólogo francês Claude Fischler [3] cunhou para enfatizar a falta de regras
e de preocupação com os efeitos da alimentação na saúde humana. Pesquisas
científicas sobre a relação da qualidade nutricional das dietas com a saúde e a
longevidade ganharam destaque no mundo. A agenda ambiental, por sua vez,
sugeria uma redução no ímpeto capitalista ao pôr em pauta os riscos do
aquecimento global provocado pelo excesso de emissões de CO2.
[2]
Programa idealizado em meados do século XX na América do Norte para aumentar a
produção agrícola no mundo com melhorias genéticas de sementes, uso intensivo
de insumos industriais, mecanização e redução do custo de manejo
[3]
Com Estelle Masson, é coautor de Comer, a alimentação de franceses, outros
europeus e americanos, Editora Senac, 2010
Finalmente,
o círculo se fechou com o surgimento de movimentos que tentam resgatar a ideia
da comida orgânica e local, parecida com aquela servida cinco décadas atrás,
inserindo-a no cardápio do dia. O locavorismo (locavore, em inglês), o
mais famoso deles, propõe o consumo de alimentos produzidos no máximo a 160
quilômetros de distância. Elaine Azevedo, no entanto, alerta para um lado não
tão estimulante do movimento: sempre há o risco de, ao se cortar os laços com o
outro, criar um ambiente xenófobo. Outro risco é o de acabar levando a mulher
de volta à cozinha, já que o movimento valoriza o antigo conceito de família
nuclear que faz todas as refeições em casa.
Estaria
a indústria de alimentos atenta à sua responsabilidade social na promoção da
saúde? O diretor de assuntos corporativos da BRF, Marcos Jank, crê que sim. O
segmento está submetido a uma série de regulamentações (mais na reportagem “Em
busca da justa medida“) e, em alguns casos, até as supera. A BRF, por
exemplo, estimula a prática do plantio direto entre seus fornecedores do campo,
uma vez que essa técnica de manejo de solo propicia uma diminuição no uso de
herbicidas.
Mas,
para Jank, a responsabilidade social da indústria de alimentos vai além. O
Brasil, na posição de grande produtor de alimentos, assumiu a responsabilidade
social de garantir segurança alimentar para países com grandes populações e sem
a sua exuberância de terras agricultáveis e aquíferos. Caso da China. “Não
creio que o Brasil conseguiria contribuir para a segurança alimentar de mais de
7 bilhões de pessoas, das quais 1 bilhão em situação de fome, se transformasse
a sua produção em orgânica”, afirma.
O
executivo da BRF destaca ainda que problemas de saúde, como a obesidade, podem
não estar diretamente relacionados ao alimento. “Os hábitos mudaram nos últimos
50 anos e o sedentarismo é uma realidade. Não tínhamos tantas escadas rolantes,
automóveis, controles remotos e uma série de outras facilidades que
desestimulam a atividade física.” A BRF foi a única de cinco empresas globais
do setor de alimentos, procuradas pela reportagem, que agendou entrevista
dentro do prazo de 10 dias, de acordo com o cronograma da revista. As demais –
Nestlé, Unilever, Pepsico e JBS – não nos atenderam até o fechamento desta
edição.
CAVALO
DE PAU
Professor
da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas
(FGV-Eaesp) e membro do Fórum de Inovação da FGV, Wilson Nobre não atua
profissionalmente na área, mas é um diletante em assuntos que envolvem
nutrição. Segundo ele, o problema da indústria de alimentos é continuar
“amarrada” ao paradigma do “fazer mais do mesmo”, introduzido há 250 anos pela
Revolução Industrial, e, portanto, com pouca chance de promover rupturas em
curto ou médio prazo. “Em vez de nutrir 7 bilhões de seres humanos, a indústria
não passa de uma vendedora de comida”, afirma.
Mesmo
que a indústria esteja ciente de que o momento pede mudanças significativas no
âmbito da qualidade nutricional dos alimentos, Nobre entende que alterar esse
percurso secular é tão difícil quanto dar um cavalo de pau em um
transatlântico. “Suponha que o presidente de uma dessas grandes empresas se
convença de que deve lançar uma linha só de orgânicos. Na primeira rateada do demonstrativo
financeiro, os acionistas o jogam porta afora, pois a sociedade também vive no
paradigma vigente.”
Wilson
Nobre e Elaine Azevedo compartilham a crença de que o mercado de alimentos
orgânicos pode aumentar escala, reduzir custos e chegar à mesa da população.
Trata-se de uma questão de tempo – e investimento. A própria Embrapa já dispõe
de tecnologia para revolucionar esse mercado.
O
acadêmico da FGV sugere o uso de ferramentas como o Design Thinking às
empresas ainda “amarradas” ao velho paradigma industrial, porém interessadas em
aprender a “nadar contra a corrente”, para usar a expressão do próprio Tim
Brown, o CEO da consultoria Ideo e criador dessa metodologia.
Um
dos pilares desse método é colocar o homem no centro das discussões de criação
e inovação, ocupando um espaço que sempre foi do marketing do produto que se
quer vender. “Como vive e o que sente a pessoa que vai se relacionar com o
alimento que lhe será vendido? Esse é o paradigma que se perdeu com a Revolução
Industrial, mas que será resgatado daqui a alguns anos, na
‘pós-pós-modernidade’”, acredita Nobre.
Para
a pergunta “comemos melhor?”, não há resposta única, mas uma combinação de
fatores. Veja alguns deles nos tópicos “Conhecemos
o que alimentamos?“e “Temos
mais qualidade na produção de alimentos?” e monte sua conclusão.
Fonte: Página 22, por Magali Cabral.
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